domingo, 27 de dezembro de 2015

Recortes sobre Ciência e Cientificidade em Lakatos[1]


D.F.Izidro

A autora/Pesquisadora[2]


Eva Maria Lakatos é graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, de São Paulo, pós-graduada em Ciências Sociais, tem os títulos de Mestre, Doutora e Livre-Docente em Sociologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde foi vice-diretora. Professora de Sociologia e Métodos e Técnicas de Pesquisa, em cursos de graduação e pós-graduação, nessas mesmas instituições. Entre seus trabalhos publicados destacam-se estudos sobre estrutura social, organização social e comunidades. É co-autora de Metodologia científica, Técnicas de pesquisa, Metodologia do trabalho científico e Fundamentos de metodologia científica, pela Editora Atlas.[3]

A natureza da Ciência e/ou sua definição


Entendemos por ciência uma sistematização de conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos  fenômenos que se deseja estudar. “A ciência é todo um conjunto de atitudes e de atividades racionais dirigidas ao sistemático conhecimento com objeto limitado, capaz de ser submetido à verificação.” (LAKATOS,1985,P.21)

A ciência, portanto, constitui-se em  um conjunto de proposições e enunciados,  hierarquicamente correlacionados de maneira ascendente ou descendente, indo gradativamente de fatos particulares para os gerais e vice-versa (conexão ascendente= indução;conexão descendente = dedução). (LAKATOS,1985,P.22)

O Escopo Científico

As ciências possuem:

· Objetivo ou finalidade. Preocupação em distinguir a característica comum ou as leis gerais que regem determinados eventos.
· Função. Aperfeiçoamento, através do crescente acervo de conhecimentos, da relação do homem com o seu mundo.
· Objeto. Subdividido em : a) material, aquilo que se pretende estudar, analisar, interpretar ou verificar, de modo geral; b) formal, o enfoque especial, em face das diversas ciências que possuem o mesmo objeto material.
(LAKATOS,1985,P.22)



[1] LAKATOS,Eva Maria.Sociologia Geral.5.ed.São Paulo:Atlas,1985.
[2] Todas as citações de Lakatos aqui são feitas ipsis litteris, a saber, diretamente, não obstante a ausência de aspas. À exceção dos títulos.
[3] Informação extraída da obra acima bibliografada.

segunda-feira, 25 de março de 2013

INTRODUÇÃO À CIÊNCIA ANTROPOLÓGICA IV

ANTROPOLOGÍA CULTURAL

Marvin Harris
Madrid, Alianza Editorial, 1990.
Capítulo 1::La Antropología y El Estúdio de la Cultura
Tradução,D.F.Izidro © 2009


Neste capítulo se explica o que é a antropologia, a que se dedicam os antropólogos e para que serve a antropologia. Também se dá uma definição de cultura e se estabelecem certas características gerais das culturas que serão depois apresentadas para explicar diferenças e semelhanças culturais.

A antropologia é o estudo da humanidade, dos povos antigos e modernos e de seus estilos de vida. Dada a amplitude e complexidade do tema, os diferentes ramos da antropologia se concentram em distintos aspectos ou dimensões da experiência humana. Alguns antropólogos estudam a evolução de nossa espécie, denominada cientificamente homo sapiens, a partir de espécies mais antigas. Outros investigam como o homo sapiens chegou a possuir a faculdade, exclusivamente humana, para a linguagem, o desenvolvimento e diversificação das linguagens e os modos em que as línguas modernas satisfazem as necessidades da comunicação humana. Outros, por último, se ocupam das tradições aprendidas de pensamento e conduta que denominamos culturas, investigando como surgiram e se diferenciaram as culturas antigas, e como e porque mudam ou permanecem iguais às culturas modernas.

Dentro dos departamentos de antropologia das principais Universidades dos Estados Unidos as diferentes perspectivas da antropologia são habitualmente representadas por quatro campos de estudo: antropologia cultural (às vezes chamada antropologia social), arqueologia, lingüística antropológica e antropologia física (Fried, 1972; Goldschmidt, 1979).Os distintos ramos das principais áreas estão descritos no quadro 1.1.

Quadro 1.1
Um quadro antropológico

Freqüentemente, os antropólogos se identificam com um ou mais ramos especializados pertencentes aos quatro campos mais importantes. O que se segue é apenas uma lista parcial.

ANTROPOLOGIA CULTURAL

Antropologia aplicada. Estuda e faz propostas para solucionar problemas práticos e avaliar resultados.
Antropologia médica. Estuda os fatores biológicos e culturais na saúde e na enfermidade e o tratamento do enfermo.
Antropologia urbana: Estuda a vida na cidade. Antropologia de desenvolvimento. Estuda as causas de subdesenvolvimento e de desenvolvimento entre as nações menos desenvolvidas.

ARQUEOLOGIA

Arqueologia histórica. Estuda as culturas do passado recente por meio de uma combinação de material escrito arquivado e escavações arqueológicas.
Arqueologia industrial. Usa técnicas da arqueologia histórica para centrar-se em fábricas e instalações industriais.
Arqueologia de contrato. Leva a cabo pesquisas arqueológicas para a defesa do meio ambiente e a proteção de lugares históricos.

LINGÜÍSTICA ANTROPOLÓGICA

Lingüística histórica. Reconstrói as origens de línguas específicas e das famílias de línguas.
Lingüística descritiva. Estuda a sintaxe e a gramática das línguas.
Sociolingüística. Estuda o uso atual da língua na comunicação cotidiana.

ANTROPOLOGIA FÍSICA (BIOLÓGICA)

Primatologia. Estuda a vida social e biológica dos macacos, grandes macacos e outros primatas.
Paleontologia humana. Busca e estuda restos fósseis de primitivas espécies humanas.
Antropologia forense. Identifica as vítimas de assassinatos e acidentes.
Genética da população. Estuda as diferenças hereditárias nas populações humanas.



A antropologia cultural se ocupa da descrição e análise das culturas – as tradições socialmente aprendidas – do passado e do presente. Tem uma subdisciplina, a etnografia, que se consagra a descrição sistemática de culturas contemporâneas. A comparação de culturas proporciona a base para hipóteses e teorias sobre as causas dos estilos humanos de vida. Não obstante este livro se centre fundamentalmente nos achados dos antropólogos culturais, as descobertas das outras classes de antropólogos são essenciais para muitos dos temas que se tratarão.

A arqueologia acrescenta uma dimensão crucial a esta empresa. Desenterrando os vestígios de culturas de épocas passadas, os arqueólogos podem estudar amplas seqüências da evolução social e cultural sob diversas condições naturais e culturais. Sua contribuição a compreensão das características atuais da existência humana e ao contraste das teorias da causalidade histórica é imprescindível.

A lingüística antropológica fornece outra perspectiva crucial: o estudo da grande diversidade de línguas faladas pelos seres humanos. Os lingüistas de orientação antropológica intentam reconstruir a história destas línguas e de famílias lingüísticas inteiras. Se interessam pela forma com que a linguagem influencia e é influenciada por outros aspectos da vida humana,pela relação  entre a evolução da linguagem e a evolução do Homo sapiens,assim como pela relação entre a evolução das línguas e a evolução das diferentes culturas.

A antropologia física fundamenta os demais campos da antropologia em nossa origem animal e nossa natureza biologicamente determinada. Os antropólogos físicos tratam de reconstruir o curso da evolução humana mediante o estudo dos restos fósseis. Assim, intentam descrever a distribuição das variações hereditárias entre as populações contemporâneas, e delimitar e medir as contribuições relativas da herança, da cultura e do meio ambiente à vida humana.

Porque a antropologia?

Muitas outras disciplinas, além da antropologia, se ocupam do estudo dos seres humanos. Nossa natureza animal é objeto de intensa investigação por parte de biólogos, geneticistas e fisiologistas. Só na medicina, centenas de especialistas investigam o corpo humano, e os psiquiatras e psicólogos buscam junto a essência da mente e a alma humanas. Muitas outras disciplinas – entre elas a sociologia, a geografia humana, a psicologia social, a história, a ciência política, a economia, a lingüística, a teologia, a filosofia, a musicologia, a arte, a literatura e a arquitetura – se ocupam de nosso comportamento cultural, intelectual e estético. Há, também, os chamados “especialistas em áreas”,que estudam as línguas e estilos de vida de determinados povos,nações e regiões: “latinoamericanistas”, “indianistas”, “sinólogos”,etc. Qual é,então,o traço característico da antropologia?

O que diferencia nossa disciplina das outras e seu caráter global e comparativo. Outras disciplinas abordam unicamente um segmento concreto da experiência humana ou uma época ou fase concretas de nosso desenvolvimento cultural e biológico. As descobertas da antropologia, ao contrário, não se baseiam jamais no estudo de uma só população, raça, tribo, classe, nação, tempo ou lugar. Os antropólogos insistem, antes de tudo, na necessidade de contrastar as conclusões extraídas do estudo de um grupo humano ou de uma determinada civilização com dados procedentes de outros grupos ou civilizações. Desta forma, a importância da antropologia transcende os interesses de qualquer tribo, raça, nação ou cultura concretas. A partir da perspectiva antropológica, todos os povos e culturas têm o mesmo interesse como objetos de estudo. Por isso, a antropologia se opõe ao ponto de vista dos que crêem ser os únicos representantes do gênero humano,estando no pináculo do progresso ou tendo sido elegidos por Deus ou pela História para moldar o mundo a sua imagem e semelhança.

Para o antropólogo, o único modo de alcançar um conhecimento profundo da humanidade consiste em estudar tanto as terras distantes quanto as próximas, tanto as épocas remotas quanto as atuais. E adotando esta visão ampla da experiência humana, quiçá possamos arrancar de nós os antolhos que nos são postos por nossos próprios estilos de vida para vemos a nós mesmos como realmente somos.

Devido a sua perspectiva biológica, arqueológica, lingüista, cultural, comparativa e global, a antropologia possui a chave de muitas para muitas questões fundamentais. Os antropólogos têm realizado importantes contribuições para a compreensão do significado da herança animal da humanidade e, portanto, para a definição do que é caracteristicamente humano na natureza humana. A estratégia antropológica reúne em si os elementos necessários para analisar o significado dos fatores raciais na evolução das culturas e nos avatares da vida contemporânea. Também possui a chave para compreender as origens da desigualdade social em forma de racismo, sexismo, exploração, pobreza e subdesenvolvimento internacional.

Porque estudar antropologia?

A maior parte dos antropólogos passam sua vida ensinando em Universidades e colégios, e realizando investigações de índole universitária. Mas, cada vez mais antropólogos encontram emprego em postos não acadêmicos. Os museus, especialmente os de história natural, arqueológicos e etnológicos confiaram durante muito tempo na experiência dos antropólogos. Nos últimos anos, os antropólogos tiveram uma boa acolhida em uma grande variedade de postos públicos e privados: no setor público, em órgãos governamentais relacionados com o bem-estar, o abuso de drogas, a saúde mental, o impacto do meio ambiente, a habitação, a educação, a ajuda exterior e o desenvolvimento agrícola; e no setor privado, como conselheiros de relações pessoais e étnicas e como conselheiros de direção em empresas multinacionais; assim como membros da equipe de hospitais e fundações.

Tendo em conta a importância crescente destes postos não acadêmicos como fonte de emprego para os antropólogos, muitos departamentos de antropologia de Universidades iniciaram ou ampliaram programas de antropologia aplicada (veja capítulo 15). Estes programas constituem um suplemento aos estudos antropológicos tradicionais, com preparação em estatística, linguagens de programação e outros conhecimentos adequados para solucionar problemas práticos nas relações humanas sob uma ampla variedade de condições naturais e culturais.

Não obstante a ampliação de oportunidades em campos aplicados, o estudo da antropologia continua sendo de grande valor não apenas pelas oportunidades de emprego que apresenta, senão por sua contribuição à compreensão básica das variações e relações humanas. Da mesma forma que a maioria dos estudantes de matemática não chegam a ser matemáticos, a maioria dos estudantes de antropologia não chegam a converter-se em antropólogos. A antropologia executa um papel básico como o da matemática nos campos das relações humanas, como o direito, a medicina, o cuidado dos filhos, a educação, o governo, a psicologia, a economia e a administração de empresas. Só sendo sensível e aprendendo a enfrentar as dimensões culturais da existência humana se pode esperar ser efetivo em qualquer destes campos.

Nas palavras de Frederica de Laguna, “a antropologia é a única disciplina que oferece um esquema conceitual para o contexto global da experiência humana... É como um carrinho-de-mão sobre o qual se podem acomodar os diversos temas de uma educação liberal, e mediante a distribuição da carga, torná-la mais manejável e fácil de levar” (1968:475).

A definição de cultura

Cultura é o conjunto aprendido de tradições e estilos de vida, socialmente adquiridos, dos membros de uma sociedade, incluindo seus modos agendados e repetitivos de pensar, sentir e atuar (isto é,sua conduta). Esta definição segue o precedente assentado por sir Edward Burnett Taylor, fundador da antropologia acadêmica e autor do primeiro livro texto de antropologia geral.
A cultura... no sentido etnográfico,é esse todo complexo que compreende conhecimentos,crenças,arte,moral,direito,costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade. A condição da cultura nas diversas sociedades da humanidade, na medida em que pode ser investigada segundo princípios gerais, constitui um tema adequado para o estudo das leis do pensamento e da ação humana (1871:1).

Alguns antropólogos, no entanto, restringem o significado de “cultura” exclusivamente às regras mentais para atuar e falar compartilhadas pelos membros de uma determinada sociedade. Estimam que estas regras constituem uma espécie de gramática da conduta e consideram as ações como fenômenos de índole “social” mais que “cultural”. Esta é a distinção que alguns antropólogos tratam de estabelecer, quando diferenciam a antropologia social da cultural (Goodenough, 1970). Nenhuma confusão pode derivar-se da definição mais inclusiva, sempre que se tenha o cuidado de indicar se se está falando das idéias e sentimentos culturalmente determinados pertencentes a vida mental das pessoas,das atividades culturalmente determinadas que realizam com seus corpos,ou de ambas as coisas.

Há outro tipo de distinção entre “social” e “cultural” também bastante freqüente. Alguns sociólogos e antropólogos empregam o termo “social” para designar a relação entre os distintos grupos de uma sociedade. Para estes cientistas sociais, a “cultura” se refere aos estilos de vida dos membros de uma sociedade, mas não a estrutura grupal desta. Conforme o uso que seguiremos neste livro, os grupos sociais e suas relações mutuas se consideraram como aspectos da cultura. A família, por exemplo, é um grupo social que se ajusta a cultura da vida doméstica de uma sociedade concreta, mas que também a reflete.

Qual é, então, a definição de sociedade? Uma sociedade é um grupo de pessoas que compartilham um habitat comum e que dependem uns dos outros para sua sobrevivência e bem-estar.

Devido o fato de que muitas grandes sociedades estão constituídas por classes, grupos étnicos, regiões e outros subgrupos significativos, freqüentemente convém referir-se as subculturas e estudá-las. Assim, por exemplo, podemos nos referir a subcultura dos negros norte-americanos, a subcultura dos subúrbios ou a subcultura dos campesinos no Brasil.

Endoculturação e relativismo cultural


A cultura de uma sociedade tende a ser similar em muitos aspectos de uma geração a outra.
Em parte, esta continuidade nos estilos de vida se mantêm graças ao processo conhecido como endoculturação. A endoculturação é uma experiência de aprendizagem parcialmente consciente e parcialmente inconsciente através da qual a geração da mais idade incita, induz e obriga a geração mais jovem a adotar os modos tradicionais de pensar e comportar-se. Assim,as crianças chinesas usam pauzinhos em lugar de garfos,falam uma língua tonal e odeiam leite porque foram endoculturados na cultura da China,em vez de na dos Estados Unidos. A endoculturação se baseia, principalmente, no controle que a geração de mais idade exerce sobre os meios de premiar e castigar as crianças. Cada geração é programada não apenas para repetir a conduta da geração anterior, senão também para premiar a conduta que se adeqüe às pautas de sua própria experiência de endoculturação e castigar, ou ao menos não premiar, a conduta que se desvia destas.

O conceito de endoculturação (apesar de suas limitações, que analisaremos mais adiante) ocupa uma posição central no ponto de vista distintivo da antropologia moderna. A compreensão do papel que desempenha na manutenção das pautas de conduta e pensamento de cada grupo forma o núcleo do fenômeno conhecido como etnocentrismo. O etnocentrismo é a crença de que nossas próprias agendas de conduta são sempre naturais, boas, belas ou importantes, e que os estranhos, pelo fato de atuar de maneira diferente, vivem segundo modos selvagens, desumanos, repugnantes ou irracionais. As pessoas intolerantes para com as diferenças culturais normalmente ignoram o seguinte fato: se tivessem sido endoculturados no seio de outro grupo, todos estes estilos de vida, supostamente selvagens, desumanos, repugnantes e irracionais seriam agora os seus.

Todos os antropólogos culturais são tolerantes e sentem curiosidade pelas diferenças culturais. Alguns, não obstante, foram mais longe e adotaram o ponto de vista conhecido como relativismo cultural, segundo o qual toda agenda cultural é,intrinsecamente,tão digna de respeito quanto as demais. Embora o relativismo cultural seja uma maneira cientificamente aceitável de referir-se às diferenças culturais, não constitui a única atitude cientificamente admissível. Como todo mundo, os antropólogos também forma julgamentos sobre o valor das diferentes classes de pautas culturais. Não há por que considerar o canibalismo, a guerra, o sacrifício humano e a pobreza como realizações culturais valiosas, para levar a cabo um estudo objetivo destes fenômenos. Nada há de mal em tratar de estudar certas pautas culturais porque se deseje mudá-las. A objetividade científica não tem sua origem na ausência de pré-juízos – todos somos parciais -, senão em ter cuidado de não permitir que os próprios pré-juízos influenciem no resultado do processo de investigação (Jorgensen, 1971).

Limitações do conceito de endoculturação

Nas condições do mundo atual, não se requer nenhuma sabedoria especial para compreender que a endoculturação não pode explicar uma parte considerável dos estilos de vida dos grupos sociais existentes. Está claro que a explicação das pautas culturais de uma geração a outra nunca é completa. As antigas pautas nem sempre se repetem com exatidão em gerações sucessivas, e continuamente se acrescentam pautas novas. Nos últimos tempos, este fenômeno de inovação alcançou tais proporções nas sociedades industriais que os adultos, programados como estavam para a continuidade intergeracional, se sentiram alarmados. O fenômeno em questão foi denominado “abismo geracional”. Como explica Margaret Mead:

Hoje em dia, em nenhuma parte do mundo há anciãos que saibam o que as crianças já sabem; não importa quão remotas e simples sejam as sociedades onde vivam estas crianças. No passado, sempre havia anciãos que sabiam mais que qualquer criança, em razão de sua experiência de maturação no seio de um sistema cultural. Hoje em dia não existem. Não se trata apenas de que os pais já não sejam guias, senão de que já não existem guias, quer os busquemos em nosso próprio país ou no estrangeiro. Não há anciãos que saibam o que sabem as pessoas criadas nos últimos vinte anos sobre o mundo em que nasceram (1970:77-78).

Evidentemente, a endoculturação não pode explicar o “abismo geracional”;temos que supor que houve uma ruptura no processo de endoculturação e que um número cada vez maior de adultos não soube induzir eficazmente seus filhos a replicar suas próprias pautas de pensamento e conduta. Portanto, a endoculturação só pode explicar a continuidade da cultura, não sua evolução. Inclusive no que se refere à continuidade, a endoculturação tem importantes limitações. Toda pauta replicada não é necessariamente o resultado da programação de uma geração por obra de outra. Muitas pautas replicadas são produto da reação de sucessivas gerações ante condições de vida social parecidas. A programação recebida pode inclusive diferir das pautas reais; isto é, a pessoa pode ser endoculturada para comportar-se de certa maneira, mas se vê obrigada, por causa de fatores que escapam ao seu controle, a comportar-se de outra maneira. Por exemplo: a endoculturação é responsável pela replicação das pautas de conduta associadas a condução de um automóvel. Outra pauta replicada são os engarrafamentos. É evidente que os condutores não são programados para provocar engarrafamentos, mas para circular com fluidez e evitar os obstáculos. Contudo, os engarrafamentos constituem um fenômeno cultural extremamente pautado.

O fenômeno da pobreza exige, como haverá ocasião para constatar, uma análise similar. Muitos pobres se alojam em habitações, se alimentam, trabalham e constituem famílias segundo pautas que replicam a subcultura de seus pais, não porque seus progenitores desejem que sigam estas pautas, mas porque se enfrentam os mesmos condicionamentos políticos e econômicos (veja Capítulo 11).

A Difusão

Enquanto que a endoculturação faz referência a transmissão de traços culturais por via geracional, a difusão designa a transmissão de traços culturais de uma cultura e sociedade a outra distinta. Este processo é tão freqüente que cabe afirmar que a maioria dos traços encontrados em qualquer sociedade se originou em outra. Se pode dizer, por exemplo,que o governo,religião,direito,dieta e língua do povo dos Estados Unidos são “empréstimos” difundidos desde outras culturas. Assim, a tradição judaico-cristã provém do Oriente Médio, a democracia parlamentar da Europa Ocidental, os cereais de nossa dieta – arroz, trigo, milho – de civilizações antigas e remotas, e a língua inglesa de uma amálgama de diversas línguas européias.

Nos inícios deste século (veja p.547), a difusão era considerada por muitos antropólogos como a explicação mais importante das diferenças e semelhanças culturais. Os persistentes efeitos deste ponto de vista, todavia, se podem apreciar em intentos de explicar as semelhanças entre grandes civilizações como resultado de derivar umas de outras: Polinésia de Peru, ou vice-versa; as terras baixas da Mesoamérica (México mais América Central) das altas; China da Europa, ou vice-versa; o Novo Mundo (as Américas) do velho, etc. Não obstante, em anos recentes, a difusão perdeu força como princípio explicativo. Ninguém duvida que, em geral, quanto mais próximas estão duas sociedades, tanto maiores serão suas semelhanças culturais. Contudo, estas semelhanças não se podem atribuir, simplesmente, a uma tendência automática a difusão de traços. É provável que sociedades próximas no espaço ocupem ambientes similares; daí, suas semelhanças podem dever-se a adaptação a condições parecidas (Harner, 1970). Existem, porém, numerosos casos de sociedades em estreito contato durante centenas de anos que mantêm estilos de vida radicalmente diferentes. Por exemplo, os Incas do Peru tiveram um governo de tipo imperial, enquanto que as sociedades vizinhas da selva careciam de qualquer forma de liderança centralizada. Outros casos são o dos caçadores africanos da selva do Ituri e seus vizinhos, os agricultores bantuez, e no sudoeste da América do Norte o dos sedentários índios pueblo e seus vizinhos apache, saqueadores nômades. Em outras palavras, a resistência a difusão é tão comum como sua aceitação. Se não fosse assim, não haveria conflito entre os católicos e os protestantes da Irlanda do Norte; os mexicanos falariam inglês (ou os americanos espanhol) e os judeus aceitariam a divindade de Jesus Cristo. Além disso, mesmo que se aceite a difusão como explicação, ainda permanece a questão de porque o elemento difundido se originou em primeiro lugar. Finalmente, a difusão não pode dar conta de muitos exemplos notáveis em que se sabe que povos que não tiveram nenhum meio de contato inventaram ferramentas e técnicas similares e desenvolveram formas de matrimonio e crenças religiosas análogas.

Em síntese, a difusão não é mais satisfatória do que a endoculturação como explicação de traços culturais similares. Se, na determinação da vida social humana só interviessem a difusão e a endoculturação, o lógico seria esperar que todas as culturas fossem e permanecessem idênticas, mas isto não é assim.

Não há que concluir, contudo, que a difusão não desempenha papel algum na evolução sociocultural. A proximidade entre duas culturas muitas vezes influencia na direção e no ritmo das mudanças, e molda detalhes específicos da vida sociocultural, embora talvez não consiga moldar os traços gerais das duas culturas. Por exemplo, o costume de fumar tabaco se originou entre os povos nativos do hemisfério ocidental e depois de 1492 se difundiu aos cantos mais afastados do globo. Isto não teria sucedido se a América tivesse permanecido isolada dos demais continentes. No entanto, o contato, por si só, fornece uma explicação parcial, posto que centenas de outros traços originários da América (como viver em tendas de campanha ou caçar com arco e flecha) não foram assimiladas, nem sequer pelos colonos que se estabeleceram nos arredores dos povos nativos.

Aspectos mentais e comportamentais da cultura

Falando com as pessoas os antropólogos tomam conhecimento de um vasto mundo interior de pensamentos e sentimentos. Este mundo interior existe em diferentes níveis de consciência. Há, em primeiro lugar, pautas muito distantes da consciência. As regras gramaticais são um exemplo de tais “estruturas profundas”. Em segundo lugar, existem pautas mais próximas à consciência, que se podem conhecer facilmente colocando-se as perguntas adequadas. Quando se lhe pede, normalmente as pessoas formulam valores, normas e códigos de conduta apropriados para atividades como desmamar bebês, cortejar membros do sexo oposto, eleger líderes, tratar enfermidades, receber a hóspedes, classificar parentes, render culto a Deus, etc. Não obstante, há momentos em que estas regras, projetos e valores não estão formalizados ou não são plenamente conscientes. Finalmente, existem regras de conduta e enunciados de valores, projetos, objetivos e aspirações plenamente conscientes, explícitos e formais que podem ser discutidos no transcurso de conversações ordinárias, estar escritos em códigos de direito ou ser anunciados em reuniões públicas (por exemplo, as regras referentes ao descarregamento de lixo, ao modo de realizar depósitos bancários, a um partido de futebol, a violação da propriedade, etc.).

Finalmente, para complicar mais as coisas, as culturas têm normas não somente para regular o comportamento, mas para romper as normas de comportamento – como quando alguém estaciona defronte uma placa que diz “não estacionar”, ou entra em um estádio sem pagar a entrada.

Mas a conversação não é a única fonte de conhecimento antropológico acerca da cultura. Além disso, os antropólogos observam, medem, fotografam e tomam notas do que fazem as pessoas durante suas atividades diárias, semanais ou anuais. Observam os nascimentos que têm lugar, assistem aos funerais, acompanham a expedições de caça, presenciam cerimônias de matrimonio, e assistem a outros muitos acontecimentos e atividades, quando estão acontecendo. Esses acontecimentos e atividades reais constituem o aspecto comportamental da cultura.

Aspectos emic e etic da cultura

A distinção entre elementos mentais e comportamentais não responde à interrogação sobre como descrever adequadamente uma cultura em sua totalidade. O problema consiste em que os pensamentos e a conduta dos participantes podem ser enfocados a partir de duas perspectivas contrapostas: da parte dos próprios participantes e da dos observadores. Em ambos os casos são possíveis às descrições científicas e objetivas dos campos mentais e comportamentais. Mas, no primeiro, os observadores empregam conceitos e distinções que são significativos e apropriados para os participantes; e, no segundo, conceitos e distinções significativos e apropriados para os observadores. O primeiro destes modos de estudar a cultura se chama emic e o segundo etic (veja-se pp.73-4 para a derivação destes termos a partir de fonética e fonêmica).  A prova da adequação das descrições e análises emic é sua correspondência com uma visão de mundo que os participantes nativos aceitam como real, significativa ou apropriada. Ao levar a cabo a investigação no modo emic,os antropólogos tratam de adquirir um conhecimento das categorias e regras necessárias para pensar e atuar como um nativo,intentam averiguar,por exemplo,qual a regra subjacente ao uso do mesmo termo de parentesco para a mãe e a irmã da mãe entre os bathonga;ou entre os adolescentes norte-americanos,quando se pode começar a namorar um menino ou uma menina.

Em vez disso, a prova da adequação das descrições etic é, simplesmente, sua capacidade para gerar teorias científicas sobre as causas das diferenças e semelhanças socioculturais. Em vez de empregar conceitos que sejam necessariamente reais, significativos e apropriados do ponto de vista do nativo, o antropólogo se serve de categorias e regras derivadas da linguagem da ciência que freqüentemente resultarão pouco familiares ao nativo. Os estudos etic comportam com freqüência a mediação e justaposição de atividades e acontecimentos que os informadores nativos consideram inadequados ou carentes de significado.


Emic, etic e ratio de sexos no gado bovino

O seguinte exemplo demonstra a importância da diferença entre o conhecimento de tipo emic e o de tipo etic em aspectos não lingüísticos de uma cultura. No distrito de Trivandrum, do estado de Kerala, na Índia meridional, os agricultores insistiam em que nunca encurtariam deliberadamente a vida de um de seus animais, em que nunca os matariam, nem os deixariam morrer de fome, afirmando, assim, a proibição hindu contra o sacrifício de gado bovino. No entanto, entre os agricultores de Kerala a taxa de mortalidade dos bezerros é quase o dobro que a das crias de sexo contrário. Na verdade, o número de fêmeas de 0-1 anos supera ao de machos do mesmo grupo de idade em uma proporção de 100 a 67. Os mesmos agricultores são plenamente conscientes de que os segundos têm mais probabilidades de morrer do que as primeiras, mas atribuem a diferença a relativa “debilidade” dos machos. “Os machos – costumam dizer – adoecem mais freqüentemente”. Ao perguntar-lhes como explicam esta propensão, alguns sugeriram que os machos comiam menos que as fêmeas. Finalmente, vários deles admitiram que isto se devia ao fato de que só se lhes permitia permanecer uns poucos segundos junto às tetas da mãe. A ninguém, contudo, ocorreu afirmar que, dada a escassa demanda de animais em Kerala, se decide sacrificar aos machos e criar as fêmeas. A perspectiva emic da situação é que ninguém, consciente ou voluntariamente, encurtaria a vida de um bezerro. Mil e uma vezes, os agricultores afirmavam que todas as crias, independentemente de seu sexo, teriam “direito a vida”. Mas a dimensão etic da situação é que a proporção de sexos no gado bovino se ajusta de um modo sistemático às necessidades da ecologia e da economia locais, mediante um “bovicidio” preferencial dos machos. Embora não se sacrifiquem os bezerros indesejados, se lhes deixa morrer de fome com maior ou menor rapidez. Em outra regiões da Índia, onde predominam diferentes condições ecológicas e econômicas,se pratica um “bovicício” etic que afeta às fêmeas ao invés dos machos,dando lugar em alguns estados a uma proporção de mais de 200 bois adultos por cada 100 vacas (veja-se Capítulo 12 para uma discussão mais detida sobre os aspectos emic e etic do gado bovino da Índia).

O padrão universal

Para poder comparar as culturas, o antropólogo tem que recolher e organizar os dados referentes às mesmas em relação com aspectos ou partes do todo sociocultural presentes em todas as culturas. A estrutura destas partes recorrentes se denomina padrão universal.

A maioria dos antropólogos coincidirá em que todas as sociedades humanas devem ter tido dispositivos culturais de índole comportamental e mental para satisfazer as necessidades da subsistência, da reprodução, da organização do intercâmbio de bens e trabalho, da vida no seio de grupos domésticos e grandes comunidades, assim como os aspectos criativos, expressivos, lúdicos, estéticos, morais e intelectuais da vida humana. No entanto, não há acordo sobre quantas subdivisões destas categorias devem ser reconhecidas, nem sobre que prioridade há de outorgar-se à pesquisa.

Este livro se utilizará de um padrão universal integrado por três divisões principais: infra-estrutura,estrutura e superestrutura.

1.Infra-estrutura. Se compõe das atividades etic e comportamentais mediante as quais toda sociedade satisfaz os requisitos mínimos de subsistência (modo de produção) e regula o crescimento demográfico (modo de reprodução).
2.Estrutura. É constituída pelas atividades econômicas e políticas de tipo etic e comportamental mediante as quais toda sociedade se organiza em grupos que distribuem, regulam e trocam bens e trabalho. Se pode falar de economias domesticas ou economias políticas como componentes universais no nível estrutural,conforme o foco de organização se centre nos grupos domésticos ou nas relações internas e externas da sociedade global.
3.Superestrutura. Está integrada pela conduta e pensamento dedicados a atividades artísticas, lúdicas, religiosas e intelectuais junto com todos os aspectos mentais e emic da estrutura e infra-estrutura de uma cultura.

A pluralidade das teorias antropológicas

Embora todos os antropólogos enfatizem a importância do enfoque multidimensional, comparativo e global, freqüentemente não estão de acordo sobre qual seria o melhor caminho a seguir para explicar e compreender a condição humana. Uns mantêm que a cultura não pode nem deveria ser estudada da forma com que os cientistas estudam os fenômenos naturais. Em vez disso, outros sustentam que a antropologia pode descobrir processos causais da mesma maneira que os biólogos descobrem as causas da evolução biológica ou os meteorologistas descobrem as causas do tempo. Mesmo entre os antropólogos que crêem que existem causas concretas para as instituições e os estilos de vida, não há, contudo, acordo sobre quais seriam essas causas.

Os tipos de investigação que os antropólogos levam a cabo e os tipos de conclusões que enfatizam estão muito influenciados pelas suposições básicas que eles fazem acerca das causas da evolução cultural. Estas suposições básicas feitas por antropólogos de diferentes linhas teóricas se chamam estratégias de investigação.

Não é concebível um livro de texto que intente representar todas as estratégias de investigação atuais, sem inclinar-se para alguma delas e com igual dedicação para todas. Nos seguintes capítulos o autor fez um esforço consciente para incluir pontos de vista alternativos em temas controvertidos. No entanto, é inevitável que a estratégia de investigação do próprio autor domine a exposição. A estratégia de investigação seguida neste livro enfatiza a infra-estrutura como uma causa da estrutura e da superestrutura, e a isto denomina materialismo cultural. No apêndice, encontraremos uma descrição dos princípios básicos do materialismo cultural e das estratégias de investigação antropológica alternativas.

Resumo

A antropologia é o estudo da humanidade. Seus quatro ramos principais são a antropologia cultural ou social, a arqueologia, a lingüística antropológica e a antropologia física. O ponto de vista que a distingue é sua perspectiva global, comparativa e multidimensional. Embora a maioria dos antropólogos se encontre empenhada em postos acadêmicos, há um número cada vez maior que se dedica a antropologia aplicada em uma ampla variedade de campos da conduta e das relações humanas. O estudo da antropologia é de grande valor para qualquer um que se proponha realizar uma carreira em um campo afetado pela dimensão cultural da existência humana.

Uma cultura consiste nas formas de pensar, sentir e atuar, socialmente adquiridas, dos membros de uma determinada sociedade. As culturas mantêm sua continuidade mediante um processo de endoculturação. Ao estudar as diferenças culturais, é importante manter-se em guarda frente ao hábito mental chamado etnocentrismo, que surge como conseqüência de não apreciar os efeitos de largo alcance das endoculturação sobre a vida humana. No entanto, a endoculturação não pode explicar como e porque mudam as culturas. Além disso, nem todas as recorrências culturais em diferentes gerações são resultado da endoculturação. Algumas são o resultado de reações a condições ou situações similares.

Enquanto a endoculturação designa o processo pelo qual se transmite a cultura de uma geração a seguinte, a difusão designa o processo mediante o qual se transmite a cultura de uma sociedade a outra. A difusão, semelhantemente a endoculturação, não é automática e não pode ser por si só um princípio explicativo. Sociedades vizinhas podem ter tanto culturas muito semelhantes como muito diferentes.

A cultura, tal como se define neste livro, consiste tanto em acontecimentos que têm lugar dentro da mente das pessoas, quanto na conduta exterior destas mesmas pessoas. Os seres humanos podem descrever seus pensamentos e conduta desde seu próprio ponto de vista. Portanto, ao estudar as culturas humanas devemos deixar claro se é o ponto de vista do participante nativo ou o ponto de vista do observador o que se está expressando. Estes são os pontos de vista emic e etic, respectivamente. Os termos emic e etic foram tomados de empréstimo da distinção lingüística entre fonêmica e fonética. Tanto o aspecto mental como o comportamental de uma cultura pode enfocar-se desde os pontos de vista emic ou etic. As versões emic e etic da realidade com freqüência diferem notavelmente, embora haja um certo grau de correspondência entre elas.

Além dos aspectos emic, etic, mental e comportamental, todas as culturas participam de um mesmo padrão universal. O padrão universal empregado neste livro consiste em três componentes: infra-estrutura, estrutura e superestrutura. Estes, por sua vez, consistem, respectivamente, nos modos de produção e reprodução; economia doméstica ou política; e os aspectos criativos, expressivos, estéticos e intelectuais da vida humana. A definição destas categorias é essencial para a organização da investigação.

Os antropólogos seguem distintas estratégias de investigação. A estratégia de investigação seguida neste livro enfatiza a importância causal da infra-estrutura e se conhece como materialismo cultural.


Arqueologia I

Cultura Material e História:
Relação entre História e Arqueologia, Fontes Escritas e Fontes Materiais[1]
D.F.IZIDRO

Introdução: Não obstante a relação entre cultura material e história e suas fontes textuais seja antiga e óbvia, a potencialidade e contribuição mútua de ambas na compreensão não apenas material, mas também simbólica das antigas sociedades é um fenômeno epistemológico de certa forma recente,relacionado também com o advento da “Nova História”, a qual apregoa,dentre outras coisas,que História não se faz apenas com documentos escritos. O cruzamento de fontes arqueológicas e históricas,contudo,não se dá sem complexidade em relação à natureza destas fontes e a subjetividade da interpretação das mesmas,especialmente das últimas. Por conseguinte, problemas relacionados com uma possível hierarquia de fiabilidade e/ou objetividade destas fontes também estão em pauta.

Justificativa: Diante do fato cada vez mais óbvio de que a cultura material e a história,no que tange às suas fontes escritas,contribuem mutuamente para o estudo do passado da humanidade,tanto no aspecto material,como no simbólico,problematizações sobre a natureza destas fontes e seu potencial informativo,bem como o modo como devem ser utilizadas no processo histórico-arqueológico são não só justificáveis como também necessárias.

Objetivos: Este estudo pretende discutir sobre as fontes materiais e documentos escritos,cultura material e história,respectivamente,no que diz respeito à importância desse cruzamento e aos problemas relacionados com a metodologia do uso das mesmas no fazer História e Arqueologia hoje a partir de  estudiosos como Pedro Paulo Funari.Em outros termos, apontar a importância,validade e contribuição,cada vez mais nítida,do cruzamento da cultura material com documentos históricos escritos para o fazer história e arqueologia,bem como os problemas que envolvem essa operação.

Metodologia: Pesquisa Bibliográfica:Este estudo busca discutir sobre a natureza,relação e potencialidade das fontes materiais e escritas,e seus problemas inerentes,a partir da reflexão e contribuição bibliográfica dos arqueológos e historiadores cujas obras são referidas na bibliografia.

Delimitação do Problema: Como se dá a relação entre História e Arqueologia, entre Cultura Material e Fontes Escritas no estudo do acontecimento passado e das antigas sociedades, segundo o estado atual da pesquisa nesses campos científicos?

DESENVOLVIMENTO

A materialidade associada a cultura,denominada “cultura material” desde a primeira metade do século XX,no contexto da historiografia marxista e/ou do materialismo histórico,diz respeito aos objetos ou “coisas” da vida cotidiana de antigas sociedades ou povos.Trata-se de objetos feitos pelo homem ou transformados por ele.Segundo Pesez (1998:180), “a cultura material se exprime no concreto,nos e pelos objetos”. Em função de sua contribuição como fonte para a explicação da vida social de antigos povos,a cultura material tem sido utilizada por diferentes campos de estudo,dentre eles o da própria História. Na verdade,a própria Arqueologia,cujo objeto de estudo é a cultura material,se originou da História,pelo menos segundo a tradição européia.No que diz respeito a Arqueologia,sabe-se que a cultura material estudada pelo arqueológo faz parte de um contexto histórico específico,o qual precisa ser estudado com fins a compreensão e intepretação dos vestígios materiais em questão. Os vestígios materiais da sociedade greco-romana só podem ser devidamente interpretados,por exemplo,à luz do conhecimento histórico que se tem sobre essa mesma sociedade.Não obstante as discussões dos historiadores sobre determinados tópicos da História e a inevitável subjetividade de sua construção,como bem observara Funari (2006:85) essas controvérsias precisam ser conhecidas e relacionadas a cultura material em estudo.

Do lado da História também se tem sentido a necessidade de fazer “conexões” com a cultura material(CARDOSO,2005:3),admitindo-se, dentre outras coisas, que a História precisa ampliar cada vez mais seu campo de atuação. Os Artefatos,por exemplo,são indicativos,direcionadores e mediadores de relações sociais (FUNARI,2006:33),portanto uma importante fonte para historiadores. O estudo da cultura material também possibilita ao historiador o acesso a antigas civilizações sem escrita,como os povos pré-históricos,ou cuja escrita ainda não pudera ser decifrada. No que diz respeito à objetividade das fontes para a reconstrução do passado,a cultura material também parece favorecer mais o historiador,pois seus vestígios materiais são involuntários e não-ideológicos,diferentemente das fontes documentais escritas.Devido a própria natureza de suas fontes,a Arqueologia transcende a História pautada apenas em fontes escritas de viés de classe,acessando assim temas ausentes ou ignorados pela documentação escrita e que são próprios da vida cotidiana. As fontes escritas excluem tais assuntos da vida cotidiana por subestima-los e considerá-los supérfluos.Aqueles que desejarem empreender uma pesquisa histórica sobre segmentos sociais marginalizados ou pouco conhecidos poderão se utilizar amplamente de fontes arqueológicas,isto é,de cultura material afim. Historiadores antigos como Heródoto e Tucídides,por exemplo,também não se limitaram às fontes escritas,antes se valeram do que hoje nós chamaríamos de fontes arqueológicas.Portanto,não obstante a origem filológica e conseqüênte ligação da História com documentos escritos,tem sido possivel demonstrar que História não se faz apenas com documentos escritos,como se supunha nas primeiras décadas do século XIX. Mas foi também a partir do século XIX que se percebeu o valor da cultura material como fonte histórica.Desde então,mesmo as civilizações cuja história nos chegara através de várias obras literárias foram estudadas também a partir das descobertas arqueológicas ou de evidências materiais,tais como o Egito e a Roma Antiga. Portanto,a História e a Arqueologia,no que diz respeito às fontes escritas e materiais,respectivamente, interrelacionam-se,contribuem-se e complementam-se grandemente.

A convergência ou utilização simultânea dessas fontes,contudo,não se dá sem problematizações. Como já mencionado,o caráter ideológico das fontes escritas precisa ser admitido e supervisionado. Nesse particular,a cultura material tem contribuído para identificar essa tendência ideológica das fontes escritas,uma vez que ela mesma serve de testemunho involuntário da história,resultando do esforço de pessoas comuns. Por isso,mesmo que os documentos escritos e a cultura material sejam produtos de uma mesma sociedade,condição própria da Arqueologia Histórica,estes podem não se mostrar complementares ou convergentes,pois enquanto a cultura material é resultado do trabalho humano trivial,a fonte escrita é fruto de uma interpretação ideológica da realidade,informando-nos mais sobre seus autores e uma minoria social elitista do que sobre a sociedade. Na verdade,a cultura material pode não apenas complementar ou confirmar as fontes escritas,mas também confrontá-las ou contradize-las. Dissonâncias entre fontes escritas e materiais têm sido cada vez mais notadas na pesquisa arqueológico-histórica. Para lidar com esse fenômeno,propõe-se que o estudioso atente para a natureza peculiar de cada fonte no que tange à questão da subjetividade ou objetividade das mesmas;e que se explore tanto as convergências quanto as divergências entre as fontes escritas e materiais,tendo em vista o significado das evidências materiais e os mecanismos ideológicos das evidências escritas. Uma vez que a expressão cultural de antigas ou modernas sociedades se dá através de fontes escritas e cultura material,em um discurso verbal e artefatual,o processo de convergência destas fontes,bem como de seu potencial informativo precisa ser constantemente analisado e problematizado,com fins o aperfeiçoamente do uso de ambos os recursos,escritos e materiais,tanto pela História quanto pela Arqueologia,estas duas ciências distintas,mas em crescente relação.

Conclusão: O diálogo interdisciplinar tem se mostrado cada vez mais imprescindível em todos os campos do saber científico;nos esforços humanos de compreender a história de seu passado ou contemporaneidade,também não poderia ser diferente. A proposta epistemológico da “Nova História” ampliou os horizontes de fontes e métodos na construção historiográfica resgatando a cultura material da margem meramente auxiliar da história para o centro da pesquisa histórica. Valorizar esse diálogo interdisciplinar e metodológico entre a expressão cultural material das antigas sociedades e sua produção escrita tem se mostrado útil e imprescindível,não apenas para a Arqueologia Histórica (que comumente estuda as antigas sociedades com escrita desde o século XV),mas para todos os seguimentos do estudo arqueológico que leva em consideração fontes materiais e fontes escritas produzidas pela mesma sociedade em estudo, tais como as arqueologias Clássica,Bíblica, Egípcia e Médio Oriental.

Referências Bibliográficas

BURKE,Peter.O que é História Cultural?.Rio de Janeiro:Zahar,2005.
CAPEL,Heloisa.A Casa Como Representação Cultural.Fragmentos de Cultura,Goiânia, v.14,n.9, p.1637-1645,set.2004.
CHIAROTTI,Tiziano Mamede.O Patrimônio Histórico Edificado como um artefato aqueológico: uma fonte alternativa de informações,Habitus,Goiânia,v.3,n.2,p.301-309,jul./dez. 2005.
FUNARI,Pedro Paulo A.Arqueologia.2.ed.São Paulo:Contexto,2006
______.Arqueologia Histórica em uma perspectiva mundial.In Arqueologia da Sociedade Moderna na América do Sul.Cultura Material.Discursos e Práticas.Andrés Zarankim e María Ximena Senatores (orgs.),Buenos Aires,Ediciones del Tridente,2002,107-116.
______.Teoria e métodos na Arqueologia contemporânea:o contexto da Arqueologia Histórica.Mneme:Revista de humanidades.Dossiê Arqueologias Brasileiras, v.6,n.13, dez. 2004/jan. 2005.Disponível em <http://www.seol.com.br/mneme>.Acesso em: 25 marc.2009.
______.Fontes Arqueológicas:Os historiadores e a cultura material.In:PINSKY,Carla Bassanezi (Org.).Fontes Históricas.1.ed.São Paulo:Editora Contexto,2005.p.81-110.
______.(Org.).Cultura material e arqueologia histórica.Campinas,Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP,1998,317pp.(Coleção Idéias).
GALLOWAY,Patricia.Material Culture and Text:Exploring the Spaces Within and Between.IN: HALL,Martin;SILLIMAN,Stephen W.Historical Archaeology.Wiley-Backwell,2006.p.42-64.
GOFF,Jacques Le.A História Nova.4.ed.São Paulo:Martins Fontes,1998.
ORSER Jr,Charles E.Encyclopedia of historical archaeology.Routledge,2002.
RENFREW,Colin;BAHN,Paul.Archaeology:Theories Methods and Practice.Third Edition. London:Thames & Hudson,2000.



[1] Comunicação Científica apresentada por ocasião da I Jornada de Arqueologia no Cerrado e suas Interfaces com a Arqueologia Brasileira, promovida pelo curso de Arqueologia/Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia – IGPA, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, realizada no período de 12-15 de maio de 2009.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

INTRODUÇÃO À CIÊNCIA ANTROPOLÓGICA III

Antropologia Urbana

O texto que segue trata-se de um “resumo” com recortes que fiz de passagens importantes do pensamento de Gilberto Velho sobre Antropologia Urbana, em um artigo seu intitulado Antropologia Urbana: Encontro de Tradições e Novas Perspectivas.

Antropologia Urbana: Por um novo e vasto olhar antropológico

A antropologia urbana é, inevitavelmente, inter e multidisciplinar. Tal diálogo e a comunicação entre diferentes disciplinas e linhas de pesquisa tem sido bastante valorizado hoje.
Contudo, foi não apenas isso, mas também o fato da própria complexidade da cidade moderno-contemporânea, particularmente das grandes metrópoles, que levou ao interesse e desenvolvimento dessa área de pesquisa.
Foi a partir da segunda metade do século XIX que pensadores de diferentes orientações passaram a se dedicar, de forma sistemática, à reflexão e pesquisa sobre o meio urbano. Tal interesse pelo urbano e/ou pela cidade se deu em paralelo ao desenvolvimento da própria antropologia como um todo que, inicialmente, voltava-se apenas para o estudo do mais distante e do aparentemente exótico e remoto.
Ademais, tal interesse pelo urbano e suas variedades se deu na Escola de Chicago, entre 1892 e 1929, no departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago, cujos expoentes William Thomas e Robert Park demonstraram bastante interesse pelas sociedades tribais e tradicionais, buscando identificar e compreender as diferenças socioculturais dentro das grandes cidades em acelerado crescimento, as quais consideravam tão importantes de serem estudadas como as diferenças entre sociedades e culturas aparentemente mais distantes e exóticas.
Os interesses e trabalhos da Escola de Chicago eram muito diversificados, portanto, sendo impossível colocá-los em um compartimento estanque. A Escola de Chicago não tinha uma unidade doutrinária, sendo constituída por uma rede de profissionais com tipos e graus diferentes de ligação com o interacionismo, o pragmatismo, a fenomenologia, a ecologia e o marxismo. Era o interesse pela pesquisa dos mais variados tipos com destaque para o trabalho de campo e observação participante que os unia. Essa variedade de objetos, contudo, eram selecionados no meio urbano, especialmente de Chicago, seu laboratório urbano por excelência,embora tenha se estendido também por todo Estados Unidos e outras partes do mundo.
Eis alguns dos temas estudados: relações raciais, ecologia urbana, carreiras e profissões, grupos desviantes, arte, minorias étnicas, processos de socialização, instituições totais, imprensa, comunicação de massas, bairros, educação, etc.
Tal heterogeneidade de objetos estimulou o desenvolvimento de várias linhas de investigação, com diferentes modos de olhar e de perceber a realidade de modo que, assim, buscavam e descobriam também novos temas e questões, em um processo de produção científica exemplar.
A forte influência de G. Simmel nessa Escola e nesses estudos é indubitável, não apenas nos estudos da sociedade,mas também da realidade em geral,pois para ele nada era insignificante e secundário. Escreveu sobre dinheiro e mercado, individualismo, conflito, sociabilidade, música, prostituição, aventura e aventureiros, culturas subjetiva e objetiva, grupos e redes, cultura feminina, formas sociais, ponte e porta, destino, rosto, paisagem, alimentação, estética, arte em geral. Sua abertura intelectual e interesses eram supradisciplinar.
A complexidade, dimensão e heterogeneidade dos grandes centros urbanos moderno-contemporâneos introduzem novas dimensões na experiência e comportamento humanos, algo mais fortemente evidenciado a partir da Revolução Industrial, com os grandes deslocamentos populacionais, migrações e profundas transformações na estrutura e na divisão social do trabalho, com fortes consequências para a produção em geral. Tudo isso, contudo, não se deu somente no nível específico do trabalho, mas, de modo mais amplo, no que toca à aparição e multiplicação de novos papéis e domínios sociais. Torna-se, assim, importante a análise que focaliza o multipertencimento como fenômeno que evidencia o trânsito não só entre diferentes correntes, mas entre distintos domínios e níveis da realidade.
No campo das ciências sociais, desde Simmel, pelo menos, se fala de indivíduo como categoria básica constitutiva, através da interação, da vida social. Surge, então, a pergunta e/ou dúvida sobre a possibilidade ou não de uma consistência identitária individual e âncoras identitárias algo que depende de uma compreensão melhor das diferentes naturezas da interação,das redes sociais,do trânsito entre universos simbólicos e culturais,das noções de províncias de significado e de mundos,das redes de significado de Clifford Geertz, das correntes de tradição cultural de F. Barth, dos multipertencimentos e do potencial de metamorfose de indivíduos vivendo e agindo em campos de possibilidade socioculturais.
A produção da antropologia urbana tem contribuído de modo significativo nessa direção e poderá se beneficiar bem mais ainda, aprofundando e ampliando suas pesquisas e reflexões.

Sobre Gilberto Cardoso Alves Velho

Nascido no Rio de Janeiro, 1945; antropólogo brasileiro.Graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968). Mestre em Antropologia Social também pela UFRJ (1970). Especializou-se em Antropologia Urbana e das Sociedades Complexas na Universidade do Texas, em Austin (1971). Doutor em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (1975).
Atua nas áreas de Antropologia Urbana, Antropologia das Sociedades Complexas e Teoria Antropológica. Além de vários cargos acadêmicos, como coordenador do PPGAS do Museu Nacional e chefe de Departamento de Antropologia, foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia - ABA (1982-84), presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS (1994-96) e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (1991-93).
Foi membro do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1983-93), tendo sido relator do primeiro tombamento de terreiro de candomblé realizado no Brasil - Casa Branca, em Salvador. Foi também membro do Conselho Federal de Cultura (1987-88).
Desde 2000, é membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (2000) e com a Comenda da Ordem de Rio Branco (1999). Tem sido colaborador e professor visitante de várias universidades brasileiras e estrangeiras.
Até o presente, orientou 61 dissertações de mestrado e 29 teses de doutorado.
Atualmente é professor titular e decano do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ.